Ligação do autismo à violência causa revolta
Manuela Andreoni
Thais Lobo
Com Agências Internacionais
26/12/2012 — “Por 
              que o Pedro não gosta da gente“. A pergunta surgiu numa plateia 
              cuja faixa etária não ultrapassava os 9 anos, colegas de Pedro, 
              um menino autista, brasileiro, cuja mãe contratara um terapeuta 
              para explicar o que era a síndrome que afeta uma em cada 88 crianças 
              nos Estados Unidos — um estudo recente da George Washington University 
              aponta para uma a cada 38 em idade escolar no mundo. No Brasil, 
              não há estatísticas oficiais. O desconhecimento da doença, entretanto, 
              acompanha as mais diversas gerações, especialmente nos momentos 
              de comoção geral, em que se buscam respostas para o inexplicável 
              — desta vez, o problema está ligado ao massacre realizado por Adam 
              Lanza, 20 anos, na escola Sandy Hook, na cidade americana de Newtown. 
              
No Brasil, uma lei aprovada no Congresso, 
              hoje na fila para a sanção da presidente Dilma Rousseff, ameaça 
              piorar o cenário. Proposta, a princípio, como um avanço, abre perigosa 
              brecha para a exclusão escolar. O perigo está no artigo 7º, que 
              modifica a punição aos agentes escolares que negam o acesso de autistas 
              a instituições de ensino, isentando de castigo os casos em que “comprovadamente 
              o serviço educacional fora da rede regular de ensino for mais benéfico 
              ao aluno”.
Caso seja referendado pela presidente, 
              será apenas o mais novo de uma série de obstáculos enfrentados por 
              autistas como Pedro, que acabou expulso da escola duas vezes, e 
              só voltou por força de uma ação judicial impetrada por sua mãe, 
              Marie Dorion Schenk. Segundo ela, somente com uma ordem judicial 
              foi possível manter seu filho na escola pública (as particula??††??res 
              não o aceitaram devido a reclamações de outros responsáveis).
O preconceito foi reforçado de maneira 
              dramática pelo massacre da última sexta-feira, quando veio à tona 
              a especulação de que o jovem teria um transtorno do espectro do 
              autismo, possivelmente a Síndrome de Asperger. A suspeita nasceu 
              a afirmação do irmão de que o atirador era “um tanto autista” e, 
              até o momento, é corroborada apenas por relatos de vizinhos e ex-colegas 
              de classe. Bastou isso para que se relacionasse o autismo à violência 
              premeditada, gerando uma onda mundial de revolta entre autistas, 
              familiares e ativistas da conscientização sobre a síndrome.
O autismo é uma condição caracterizada 
              pela deficiência de desenvolvimento social, a dificuldade de comunicação 
              e ocorrência de padrões repetitivos de comportamento. Suas raízes, 
              porém, ainda não são bem compreendidas pela comunidade científica 
              — há mais de cem genes mapeados associados à disfunção. Mas sabe-se 
              que é um transtorno do desenvolvimento que pode variar de leve a 
              grave, tendo a Síndrome de Asperger como forma leve. O autismo clássico, 
              por outro lado, envolve atrasos no desenvolvimento mental e na fala, 
              como representado no cinema por Dustin Hoffman em “Rain Man”, num 
              desempenho premiado com o Oscar de melhor ator.
Indivíduos com transtornos do espectro 
              do autismo muitas vezes são vítimas de bullying na escola e no trabalho, 
              frequentemente sofrem de depressão, ansiedade e pensamentos suicidas. 
              Mas especialistas são categóricos ao afirmar que não há evidência 
              de que eles são mais propensos do que qualquer outro grupo para 
              cometer crimes violentos. Nenhuma das gradações do austimo envolve 
              comportamento violento, típico apenas do transtorno de personalidade 
              antissocial, conhecido popularmente como psicopatia.
Nos Estados Unidos, um médico afirmou, 
              em entrevista à Fox News, que um Asperger??††?? pode ter “um colapso 
              associado ao comportamento violento”. No programa “Piers Morgan 
              Tonight”, da CNN, um convidado disse que um sintoma do autismo é 
              que “algo está faltando no cérebro, uma capacidade de empatia, conexão 
              social” — o que para estudiosos está ligado, na verdade, à dificuldade 
              de interação e não à falta de sentimentos. E a conexão feita, numa 
              matéria do “New York Times”, entre o episódio e o diagnóstico também 
              foi alvo de críticas.Grupos de defesa de pessoas com autismo divulgaram 
              notas de repúdio à cobertura do caso de Newtown. A Sociedade Americana 
              de Autismo escreveu: “Subentender ou sugerir que existe alguma ligação 
              é errado e prejudicial para mais de 1,5 milhão de pessoas não violentas 
              que vivem com autismo a cada dia.”
A grave correlação, porém, não se 
              restringiu a este último massacre. Na esteira do tiroteiro em uma 
              sala de cinema em Aurora, o apresentador Joe Scarborough, da MSNBC, 
              disse que atiradores como James E. Holmes estão “em alguma escala 
              do autismo”.
Para mães e especialistas da área, 
              a repercussão do massacre representa uma regressão no trabalho para 
              conscientizar a sociedade sobre o autismo.
— A verdade é que não há nada que 
              indique que um autista é mais violento do que outras pessoas. É 
              tão relevante falar que ele era Asperger quanto dizer que tinha 
              olhos azuis — diz Andréa Werner, mãe de um menino autista de 4 anos.
Um estudo conduzido pelo Hospital 
              Presbiteriano de Nova York durante cinco anos mostrou que entre 
              as centenas de adultos autistas monitorados nenhum esteve envolvido 
              em ocorrências com uso de armas. Entre as mais de mil crianças e 
              adolescentes também analisados, apenas 2% tiveram casos relatados 
              pelos pais por agressividade contra um não parente — índice menor 
              do que num grupo de controle.
— O autista tem dificuldade de controlar 
              seus impulsos. ??††?? Mas essas ações são direcionadas normalmente 
              ao círculo familiar, até pela dificuldade de relacinamento. É uma 
              agressividade menos elaborada, ligada a uma frustração imediata. 
              Pegar uma arma e entrar numa escola para matar crianças não é um 
              ato impulsivo, é planejado — explica Francisco Assumpção, professor 
              do Instituto de Psicologia da USP e envolvido há 35 anos em estudos 
              de saúde mental infantil, principalmente o autismo.
O diagnóstico da Síndrome de Asperger, 
              uma condição na qual os indivíduos têm habilidades normais de linguagem 
              ou inteligência acima da média em determinados assuntos, mas lutam 
              para entender regras sociais, se popularizou muito nos últimos anos. 
              Alguns jovens adultos com a condição nomeiam-se orgulhosamente de 
              “aspies’’. Temple Grandin, engenheira agrônoma de renome, Craig 
              Newmark, fundador da Craigslist, Bill Gates e até personagens da 
              ficção como Sheldon Cooper, o físico que estrela a série “The Big 
              Bang Theory’’, são apontados comumente como portadores da síndrome.
Mas se houve algum abrandamento 
              do estigma para as pessoas com autismo em um mundo que premia aqueles 
              altamente sociáveis, os especialistas preocupam-se com o fato de 
              que os indivíduos afetados podem agora ter mais um motivo para evitar 
              a divulgação de sua condição a professores, patrões e membros da 
              comunidade — muitas vezes o primeiro passo na sensibilização e difusão 
              do conhecimento.
Foram muitas as histórias ouvidas 
              pela reportagem. Uma mãe que desistiu de contar a verdade a seu 
              filho de 14 anos, que pensa sofrer de déficit de atenção, mas na 
              verdade é Asperger. Outra que pediu para o filho não dizer aos colegas 
              da nova escola que é autista, com medo de represálias. Um rapaz 
              que acaba de passar para um concurso da Petrobras tem medo de que 
              seus novos colegas de trabalho o rotulem como agressivo. 
Cinco meses depois de perder o p??††??ai, 
              um adolescente Asperger que ficou confuso com o próprio diagnóstico.
— De repente, caiu por terra toda 
              aquela construção que a gente ergueu, tijolinho por tijolinho. — 
              afirma Daniela Laidens, mãe de uma menina autista de 5 anos, referindo-se 
              à psicóloga Elizabeth Monteiro que fez confusão ao misturar, em 
              entrevista no “Domingão do Faustão”, os conceitos de psicopatia 
              e Asperger. — Eu sabia que, naquele momento, aquele público imenso 
              não ia entender de forma clara. O Brasil não conhece o autismo.
A desinformação sobre a síndrome, 
              porém, não se restringe ao preconceito. A dificuldade de diagnosticar 
              uma criança autista, em especial as gradações mais leves, é enfrentada, 
              constantemente, por mães e pais de autistas. Marie Dorion Schenk, 
              a mãe de Pedro e de outro menino Asperger, conta que, ao consultar 
              um “pediatra renomado”, ouviu que seu filho era “mimado”. Ela só 
              obteve o diagnóstico correto quando foi morar nos Estados Unidos. 
              Para Marie, a importância da conscientização dos pediatras é parte 
              da luta contra a estigmatização dos autistas:
— Quando você lê sobre o assunto, 
              fala-se que o autista se isola. Mas a mãe não percebe isso, porque, 
              com você, ele tem vínculo. Tem muita mãe de criança pequena que, 
              sem um diagnóstico correto, entra em negação mesmo percebendo os 
              sinais do autismo.
Segundo Ricardo Halpern, 
              presidente do Departamento de Desenvolvimento e Comportamento da 
              Sociedade Brasileira de Pediatria, o problema já foi identificado 
              há alguns anos. Ele admite que é preciso mais esforços para capacitar 
              pediatras, mas reforça que já são organizados cursos de capacitação 
              e congressos sobre o tema. Segundo ele, a identificação de transtornos 
              prejudiciais o desenvolvimento das crianças é uma das bandeiras 
              da atual gestão.
— Tudo na criança exige tratamento 
              multidisciplinar. ??††?? Não basta apenas tratar os sintomas. A 
              criança está em desenvolvimento. É preciso fazer a interface entre 
              a escola e a família — defende Assumpção.
O diagnóstico precoce é um dos principais 
              desafios. Normalmente, as síndromes do autismo são identificadas 
              em torno dos 5 anos, mas boa parte dos diagnósticos já sai antes 
              3 anos. Há casos, entretanto, que a criança já começa a apresentar 
              alguns sintomas aos 9 meses. Nos Aspergers, as mudanças são mais 
              sutis.
— A dificuldade está exatamente 
              no fato de os sintomas serem brandos. É uma sociabilidade que pode 
              parecer bizarra, mas é mais próxima da vida real — aponta Assumpção.
O tratamento para a habilitação 
              dos autistas também é um campo que continua a impor desafios diante 
              da variedade de gradações da síndrome. Hoje existirem dois métodos 
              amplamente difundidos: o Teacch (Treatment and Education of Autistic 
              and related Communication-handicapped Children), criado na Carolina 
              do Norte em 1964 e voltado para aqueles quadros mais comprometidos, 
              e o ABA (Applied Behaviour Analysis), que trabalha com a análise 
              de comportamento.
— São poucas as drogas para diminuir 
              os sintomas e facilitar as abordagens de reabilitação. Mas não há 
              regressão. Nos quadros autistas, minimiza-se o prejuízo, o que não 
              significa passar de um autismo grave para leve — explica Assumpção. 
              Às incertezas, soma-se o alto custo dos tratamentos.
Segundo Andréa, nos EUA, recomenda-se 
              um acompanhamento de 40 horas semanais, o que para a mãe de Theo 
              é impraticável. Ela paga de R$ 100 a R$ 150 por hora de terapia 
              para seu filho, fora a mensalidade da escola particular. O plano 
              de saúde paga apenas uma cota de horas de terapia. A dela estourou 
              em março.
— Você pode até entrar na Justiça. 
              Mas acho que não vale a pena. O governo não ajuda. Já morei em um 
              prédio em que o port??††??eiro tinha um filho autista. Só para diagnosticar, 
              demorou anos — lembra.
Mas é o preconceito que as mães 
              e os autistas mais temem. Marie, mãe de Pedro, teve dificuldades 
              para convencer a diretora da escola do filho de que era necessário 
              explicar às crianças a síndrome. Conseguiu uma hora apenas na turma 
              do filho. Na sala de aula, a segunda rodada de perguntas foi bem 
              diferente da primeira, quando as crianças queriam entender por que 
              o menino autista não gostava delas. Marie conta que os colegas de 
              seu filho quiseram saber algo bem simples depois de entenderem o 
              que era a síndrome: “como a gente pode ajudar o Pedro?”.
— Depois disso, melhorou muito.
Novo manual para o autismo
A Síndrome de Asperger, um autismo 
              do tipo leve, foi excluída do novo manual de diagnóstico e estatística 
              para transtornos mentais (DSM, na sigla em inglês) organizado pela 
              Associação Americana de Psiquiatria, o DSM-5, que só será publicado 
              em maio de 2013. Agora, os sintomas de Asperger farão parte do novo 
              item “transtornos do espectro do austismo”, já usado por muitos 
              médicos. A nova denominação abarcará todas as formas de autismo, 
              da mais leve à mais severa. As mudanças foram controversas, já que 
              muitos pacientes com Asperger temem perder benefícios conquistados 
              por terem diagnósticos menos comprometedores. A revisão do manual, 
              usado por psiquiatras de vários países, é a mais importante dos 
              últimos 20 anos.
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