O interesse de estudar os Pokémons é para demonstrar que,
às vezes, as crianças têm competências
extraordinárias para aprender."
Em toda parte do globo em que desembarcam, essas 151 criaturas vindas de Tóquio parecem ter comprado uma passagem só de ida. Apesar de esquisitos, seus nomes fazem parte do vocabulário de qualquer criança, pouco importa o idioma. Os Pokémons - forma abreviada de Pocket Monsters (monstros de bolso) - são monstros só mesmo para o bolso dos pais. Para os filhos, especialmente os menores de 10 anos, eles são adoráveis. A começar por Pikachu, o xodó disparado da turma.
Entre as crianças, um único lema: quanto mais Pokémons, melhor. O motivo de tanta cobiça é evidente. Tanto o desenho animado quanto o jogo de cartas ou o videogame propõem uma caçada aos Pokémons cujo objetivo é acumular o maior número possível deles. Até aqui, nada mais do que um jogo convencional. A diferença é que não basta sair capturando Pokémons por aí. É preciso treiná-los. Isso porque as capturas se dão durante as lutas entre as criaturinhas, e só as mais preparadas vencem.
E, para treiná-las, a única saída é conhecê-las. Está aí o porquê de as crianças adquirirem um conhecimento quase enciclopédico sobre o assunto. Você sabia que os Pokémons estão divididos em quinze gêneros? Que cada um deles tem poderes que lhe são próprios? Que à medida que avançam nos treinamentos e derrotam outros Pokémons eles mudam de nome?
Se você tem mais de treze, catorze anos, é provável que não saiba que o Charmander evolui para Charmeleon e, finalmente, passa a se chamar Charizard. Se você é adulto, aí é que acha de uma vez que tudo isso não passa de "coisa de criança". Exceção seja feita a Gilles Brougère. Um dos maiores especialistas do mundo em jogos e brinquedos, ele está no Brasil há quase um mês. Sua viagem não é brincadeira. A entrevista a seguir foi concedida em um dos únicos três dias de recreio que teve entre as diversas conferências e reuniões de trabalho de que participou na USP, na UFRJ e na UnB.
Gilles Brougère lamenta que adultos, e educadores em particular, não conheçam a cultura infantil e que tenham, por causa de sua estrutura comercial, uma visão exclusivamente negativa sobre ela, esquecendo-se de analisar o conteúdo, mais rico do que imaginam.
Ele dá um puxão de orelha nos educadores que preferem simplesmente banir os Pokémons da escola e sugere uma dupla estratégia: assim como as crianças, é preciso conhecer os monstrinhos antes de atacá-los e usar esse conhecimento em atividades pedagógicas que atendam aos objetivos de ensino.
O senhor afirma que o que está em jogo nesse debate em torno dos Pokémons é a conquista de um espaço para a cultura infantil nas escolas. Como é esse espaço hoje?
Gilles Brougère - O que eu penso, fundamentalmente, é que há uma enorme distância - quem sabe uma oposição -, que não se pode subestimar, entre a cultura infantil contemporânea e a escola. A cultura infantil procura dar à criança um prazer imediato, em função do seu desejo atual como criança. A educação, ao contrário, funciona sob uma lógica que consiste em desviar, de certa forma, a criança de sua infância para conduzi-la a um futuro de adulto. Por isso, ela é orientada por coisas que podem não interessar às crianças. Mesmo se pudermos colocar em prática técnicas pedagógicas que se baseiem no interesse das crianças, resta uma contradição entre a relação direta entre os produtores dessa cultura e as crianças, que se formam através da televisão, e o sistema educacional.
Os Pokémons, e a cultura infantil em geral, causam nos educadores um sentimento de perda de controle...
Gilles Brougère - Sim, a cultura infantil é algo que lhes escapa totalmente. Eles percebem a real dimensão de consumo e se sentem impotentes diante disso. As crianças que entrevistei recentemente sobre os Pokémons disseram que os educadores são hostis. Hostis à cultura infantil, aos Pokémons, ao consumo que isso implica. Eu diria que é coerente essa hostilidade à cultura contemporânea e que se prefira outros tipos de cultura infantil. As primeiras formas de literatura infantil, digamos, tinham uma dimensão educativa muito forte e o controle total dos adultos, enquanto a cultura infantil de hoje é ligada à lógica da audiência, da sedução da criança, provocando um curto-circuito entre pais e educadores.
Essa hostilidade se manifesta na escola sob a forma de advertências mais ou menos severas, confiscos, proibição das cartas dos Pokémons na sala e nos corredores, durante o intervalo...
Gilles Brougère - Exatamente, muito mais do que sob a forma de crítica, o que prova a fraqueza dos educadores. No entanto, poderíamos ver isso evocando outro aspecto: os educadores não conhecem suficientemente a cultura infantil. Eles têm uma visão negativa sobre a estrutura comercial porque deixam de analisar o conteúdo, que é muito mais rico que imaginam. Dessa forma, não podem dialogar e, eventualmente, criticar com conhecimento de causa.
Como o aspecto comercial é visto acima de tudo, isso leva a um boicote por parte dos professores. O que deve ser feito para restabelecer o diálogo
Gilles Brougère - Não é porque um produto é comercial - Disney, Pokémon ou qualquer outro - que ele é desprovido de complexidade cultural. É uma pena que os educadores não se dêem ao trabalho de observar de perto, sobretudo porque, para perceber essa complexidade, é preciso muito mais que assistir por cima a um episódio do desenho. É preciso assistir a vários, tentar compreender, ver os elementos mais elaborados que estão por trás de uma narrativa na maioria das vezes muito simples.
Esse boicote acaba sendo, para muitos educadores, o desperdício de uma oportunidade de conhecer melhor seus alunos...
Gilles Brougère - Eu concordo inteiramente com isso. Para mudar um pouco as coisas, é preciso que os educadores conheçam a cultura infantil, saibam o que as crianças descobrem através dela e vejam que as coisas não são tão simples assim. No caso particular dos Pokémons, há uma relação com o conhecimento muito complexa, que poderia ser interessante para um educador conhecer. Outro ponto é que um projeto educacional pode ter a estratégia de partir do interesse da criança, se apoiar na cultura infantil, para ir além. Afinal, não faz sentido que um projeto educacional seja a mesma coisa que um projeto de entretenimento da mídia. É uma dupla estratégia: conhecer melhor e eventualmente utilizar esse conhecimento em atividades pedagógicas correspondentes aos objetivos de ensino.
Quais poderiam ser essas atividades pedagógicas?
Gilles Brougère - É difícil dizer sem que se façam experiências. Eu penso que cabe aos educadores descobri-las em função de como se pretende integrar esses elementos da cultura infantil. O que eu posso citar é uma experiência que realizei há cerca de dez anos sobre os Maîtres de l´Univers [He-Man, no Brasil], um desenho animado de muito sucesso. Nós enviamos maciçamente a alunos de escolas maternais, entre 4 e 5 anos, esses personagens para, em seguida, analisarmos o uso que foi feito deles em sala. Se um grupo fez apenas um uso lúdico, a maior parte da classe desenvolveu atividades pedagógicas de todo tipo: manuais, artísticas, construindo o castelo ou a cidade do He-Man. Havia atividades criativas sobre os nomes - os professores pediram aos alunos para criar outros nomes para os personagens. Havia também atividades de leitura e linguagem, demonstrando um forte interesse das crianças por esse universo da leitura, no caso daquelas com um pouco mais de idade, entre 5 e 6 anos.
As atividades que as crianças fazem espontaneamente são as trocas, às vezes até envolvendo dinheiro. Naturalmente, os professores se opõem a isso. Eles não querem que a escola reproduza uma situação de consumismo ou que as lideranças dos alunos se definam pela quantidade de Pokémons de cada um. Como o senhor vê essa questão?
Gilles Brougère - Eu acho que não há nada de novo nisso. Na realidade, essa é uma das chaves do seu sucesso. As práticas de troca, de coleção e de comércio têm como ancestral distante o que fazíamos com as bolinhas de gude. O sistema de trocas é muito antigo e, se não fossem os Pokémons, seria outra coisa. Há uma tradição de colecionar, acumular, trocar e, às vezes, de vender e assim pode-se determinar uma liderança nos grupos. A diferença é que esse universo passa pelo consumo. Mas o que não passa atualmente pelo consumo? A criança não vive em um mundo alheio ao consumo. Só que, nesse caso, o papel dos pais se sobrepõe ao dos educadores. Dar limites ao consumo não é papel do educador, nem interferir na forma como se vê o consumo no seio da família, nem decidir quais são as formas de consumo legítimas ou não.
Como a escola pode regular, limitar essa atividade, sem tolher o interesse e a curiosidade infantis?
Gilles Brougère - A escola pode editar regras sobre os Pokémons ou sobre qualquer outro objeto para evitar que certas práticas acabem surtindo efeitos negativos. Mas elas serão muito mais interessantes se estiverem em relação estreita com as crianças, dependendo da idade delas. Por que fazê-las sob a forma de regras absolutas, impostas pelos adultos às crianças? Por que não perguntar às crianças quais problemas podem ocorrer durante a troca de Pokémons? As crianças são muito sensíveis à idéia de que podem roubar seus Pokémons, que pode haver trocas desiguais. Contrariamente ao que se pensa, elas poderão criar regras tão severas quanto às dos adultos, mas que terão uma lógica aceitável, porque elas terão a impressão de que criaram um sistema. Podemos inclusive imaginar um tribunal, um recurso para os casos em que uma criança considere a troca ilegítima, em que se sinta enrolada ou lesada.
O fato de colecionar e trocar cartas reproduz, nas devidas proporções, a busca pelo saber. As crianças podem muito bem colecionar conhecimentos, trocar informações sobre outros assuntos que não os Pokémons. Mas para isso elas precisariam sentir o mesmo prazer que têm com os brinquedos. Como isso pode ser despertado?
Gilles Brougère - O interesse de estudar os Pokémons é justamente para demonstrar que, às vezes, as crianças têm competências extraordinárias para aprender. O nível de conhecimento exigido para lidar com os Pokémons é muito elevado. Mas atenção: é um conhecimento limitado, baseado na memória. Não é um conhecimento estruturado segundo a lógica da escola. Tenho a impressão que não se trata do mesmo conhecimento que se quer valorizar nas crianças. Ele traz uma visão muito tradicional do saber, própria da aprendizagem japonesa nas escolas primárias. De qualquer forma, as crianças demonstram um esforço para dominar o assunto, acumular informações, o que é um ponto interessante. Mas, na realidade, elas fazem isso por uma finalidade que não é o saber. Elas mobilizam enormes esforços para seu prazer. É como nos esportes, em que as crianças se esforçam ao máximo para progredir numa atividade, mas fazem muito menos esforço físico se o contexto não for tão motivante. Uma característica interessante do divertimento é que muitas vezes ele é uma ocasião de aprendizagem, de conhecimento, de progresso. Eu penso, por exemplo, em um certo número de atividades de lazer: as crianças acumulam conhecimentos extraordinários sobre cantores ou filmes.
Ainda sobre esse progresso que os alunos fazem quando o assunto são os Pokémons, o senhor acredita que isso passa por um processo psicológico, de identificação, que faz os alunos se sentirem mais próximos das aventuras e dos problemas de Ash e de Pikachu que dos professores?
Gilles Brougère - A identificação é efetivamente um elemento entre outros, não é tudo. Eu acho que há um contexto de competição com os outros, assim como há uma concorrência pelo saber. Dominar o universo dos Pokémons é ser reconhecido como igual aos outros. O que é determinante é a socialização entre os pares, seja no universo infantil, seja no adolescente. Para participar de um certo grupo é preciso dominar uma ação, como jogar futebol. Caso contrário, se é posto de lado. Para participar de outro, é preciso conhecer um universo de referência como o dos Pokémons, videogames, canções ou filmes. Quer dizer, o que as crianças procuram é a atenção de um grupo e partilhar de suas atividades. Para isso, elas estão dispostas a esforços enormes, e não é simples reproduzir isso em um ambiente escolar. Não se pode esquecer de que o ambiente escolar precisa funcionar baseado na sociabilização infantil e a responsabilização coletiva das crianças em projetos.
O que quis sugerir, quando falei sobre a eventual identificação das crianças com os Pokémons, é que não dá para reduzir o sucesso desse desenho a um golpe de marketing, ou dá?
Gilles Brougère - Eu penso que não. Sobretudo porque parece claro que a Nintendo não acreditava muito nisso no início. Ela fez o Pokémon como um jogo de videogame, que lhe pareceu muito complicado. Por isso, fez o desenho animado, para que o jogo fosse acessível. Aí, o desenho teve um sucesso considerável e imprevisto. Quando o sistema entrou em marcha, aí, sim, ela investiu muito em marketing. O marketing não explica o sucesso, mas sem ele não haveria essa dimensão mundial e a manutenção desse sucesso. Outros brinquedos são alvo de um marketing desenvolvido sem o mesmo sucesso ou mais breve. Há um encontro entre o que é proposto e a adesão das crianças. Há algumas idéias fortes, sem dúvida, e que são difíceis de compreender para explicar como pode haver um interesse tão forte. O fato é que a sociedade aproveita esse interesse para transformá-lo em sucesso comercial.
De fato, nem todos os produtos têm um sucesso semelhante. Você acredita que esse sucesso se deve também ao fato de a criança poder encontrar informações sobre os Pokémons nas mais variadas mídias: cartas, videogame, filme, desenho animado, Internet, cada uma delas apropriada a uma faixa etária, como se o produto acompanhasse o crescimento da criança...
Gilles Brougère - Acho que isso também não estava previsto. O produto de base é o videogame, o jogo para o GameBoy, dirigido a garotos de cerca de oito anos. O alvo dos Pokémons é muito mais vasto porque aconteceram imprevistos. Graças ao Pikachu, eles despertaram o interesse dos garotos mais jovens e das garotas, que não jogam videogame. O que eu percebo na França é que esse sucesso se estende a outras faixas etárias e a outros grupos que não precisam jogar para se interessar. Uma parte da população é muito ligada mesmo sem jogar videogame e coleciona cartas mesmo sem jogá-las.
Outra constatação é que o sucesso dos Pokémons se deu em escala mundial. É por isso que o senhor faz parte de um grupo de pesquisa internacional, para compreender o fenômeno nessa escala global?
Gilles Brougère - Sim, eu pude perceber isso chegando ao Brasil. É aí que reside o mistério, na minha opinião. Por que eles funcionam tão bem em tantos países? Enquanto temos uma história tipicamente japonesa, é um produto que não destrói as características japonesas, ao contrário de outros fenômenos de massa que desde o início se imaginavam internacionais. Isso não é fácil de explicar. O que tentaremos estudar é a maneira como as crianças em diferentes culturas se apropriam desse universo. Se elas o interpretam da mesma maneira, se o utilizam da mesma forma. A partir daí, tentaremos traçar algumas comparações. Sobre isso eu não posso adiantar mais nada, pois só teremos uma reunião em novembro, quando trocaremos nossos primeiros resultados de pesquisa.
extraordinárias para aprender."
"Nos
Pokémons, há uma relação com o conhecimento muito complexa, que poderia ser interessante
para um educador conhecer. (...) Um projeto educacional pode partir do
interesse da criança, se apoiar na cultura infantil, para ir além."
Em toda parte do globo em que desembarcam, essas 151 criaturas vindas de Tóquio parecem ter comprado uma passagem só de ida. Apesar de esquisitos, seus nomes fazem parte do vocabulário de qualquer criança, pouco importa o idioma. Os Pokémons - forma abreviada de Pocket Monsters (monstros de bolso) - são monstros só mesmo para o bolso dos pais. Para os filhos, especialmente os menores de 10 anos, eles são adoráveis. A começar por Pikachu, o xodó disparado da turma.
Entre as crianças, um único lema: quanto mais Pokémons, melhor. O motivo de tanta cobiça é evidente. Tanto o desenho animado quanto o jogo de cartas ou o videogame propõem uma caçada aos Pokémons cujo objetivo é acumular o maior número possível deles. Até aqui, nada mais do que um jogo convencional. A diferença é que não basta sair capturando Pokémons por aí. É preciso treiná-los. Isso porque as capturas se dão durante as lutas entre as criaturinhas, e só as mais preparadas vencem.
E, para treiná-las, a única saída é conhecê-las. Está aí o porquê de as crianças adquirirem um conhecimento quase enciclopédico sobre o assunto. Você sabia que os Pokémons estão divididos em quinze gêneros? Que cada um deles tem poderes que lhe são próprios? Que à medida que avançam nos treinamentos e derrotam outros Pokémons eles mudam de nome?
Se você tem mais de treze, catorze anos, é provável que não saiba que o Charmander evolui para Charmeleon e, finalmente, passa a se chamar Charizard. Se você é adulto, aí é que acha de uma vez que tudo isso não passa de "coisa de criança". Exceção seja feita a Gilles Brougère. Um dos maiores especialistas do mundo em jogos e brinquedos, ele está no Brasil há quase um mês. Sua viagem não é brincadeira. A entrevista a seguir foi concedida em um dos únicos três dias de recreio que teve entre as diversas conferências e reuniões de trabalho de que participou na USP, na UFRJ e na UnB.
Gilles Brougère lamenta que adultos, e educadores em particular, não conheçam a cultura infantil e que tenham, por causa de sua estrutura comercial, uma visão exclusivamente negativa sobre ela, esquecendo-se de analisar o conteúdo, mais rico do que imaginam.
Ele dá um puxão de orelha nos educadores que preferem simplesmente banir os Pokémons da escola e sugere uma dupla estratégia: assim como as crianças, é preciso conhecer os monstrinhos antes de atacá-los e usar esse conhecimento em atividades pedagógicas que atendam aos objetivos de ensino.
O senhor afirma que o que está em jogo nesse debate em torno dos Pokémons é a conquista de um espaço para a cultura infantil nas escolas. Como é esse espaço hoje?
Gilles Brougère - O que eu penso, fundamentalmente, é que há uma enorme distância - quem sabe uma oposição -, que não se pode subestimar, entre a cultura infantil contemporânea e a escola. A cultura infantil procura dar à criança um prazer imediato, em função do seu desejo atual como criança. A educação, ao contrário, funciona sob uma lógica que consiste em desviar, de certa forma, a criança de sua infância para conduzi-la a um futuro de adulto. Por isso, ela é orientada por coisas que podem não interessar às crianças. Mesmo se pudermos colocar em prática técnicas pedagógicas que se baseiem no interesse das crianças, resta uma contradição entre a relação direta entre os produtores dessa cultura e as crianças, que se formam através da televisão, e o sistema educacional.
Os Pokémons, e a cultura infantil em geral, causam nos educadores um sentimento de perda de controle...
Gilles Brougère - Sim, a cultura infantil é algo que lhes escapa totalmente. Eles percebem a real dimensão de consumo e se sentem impotentes diante disso. As crianças que entrevistei recentemente sobre os Pokémons disseram que os educadores são hostis. Hostis à cultura infantil, aos Pokémons, ao consumo que isso implica. Eu diria que é coerente essa hostilidade à cultura contemporânea e que se prefira outros tipos de cultura infantil. As primeiras formas de literatura infantil, digamos, tinham uma dimensão educativa muito forte e o controle total dos adultos, enquanto a cultura infantil de hoje é ligada à lógica da audiência, da sedução da criança, provocando um curto-circuito entre pais e educadores.
Essa hostilidade se manifesta na escola sob a forma de advertências mais ou menos severas, confiscos, proibição das cartas dos Pokémons na sala e nos corredores, durante o intervalo...
Gilles Brougère - Exatamente, muito mais do que sob a forma de crítica, o que prova a fraqueza dos educadores. No entanto, poderíamos ver isso evocando outro aspecto: os educadores não conhecem suficientemente a cultura infantil. Eles têm uma visão negativa sobre a estrutura comercial porque deixam de analisar o conteúdo, que é muito mais rico que imaginam. Dessa forma, não podem dialogar e, eventualmente, criticar com conhecimento de causa.
Como o aspecto comercial é visto acima de tudo, isso leva a um boicote por parte dos professores. O que deve ser feito para restabelecer o diálogo
Gilles Brougère - Não é porque um produto é comercial - Disney, Pokémon ou qualquer outro - que ele é desprovido de complexidade cultural. É uma pena que os educadores não se dêem ao trabalho de observar de perto, sobretudo porque, para perceber essa complexidade, é preciso muito mais que assistir por cima a um episódio do desenho. É preciso assistir a vários, tentar compreender, ver os elementos mais elaborados que estão por trás de uma narrativa na maioria das vezes muito simples.
Esse boicote acaba sendo, para muitos educadores, o desperdício de uma oportunidade de conhecer melhor seus alunos...
Gilles Brougère - Eu concordo inteiramente com isso. Para mudar um pouco as coisas, é preciso que os educadores conheçam a cultura infantil, saibam o que as crianças descobrem através dela e vejam que as coisas não são tão simples assim. No caso particular dos Pokémons, há uma relação com o conhecimento muito complexa, que poderia ser interessante para um educador conhecer. Outro ponto é que um projeto educacional pode ter a estratégia de partir do interesse da criança, se apoiar na cultura infantil, para ir além. Afinal, não faz sentido que um projeto educacional seja a mesma coisa que um projeto de entretenimento da mídia. É uma dupla estratégia: conhecer melhor e eventualmente utilizar esse conhecimento em atividades pedagógicas correspondentes aos objetivos de ensino.
Quais poderiam ser essas atividades pedagógicas?
Gilles Brougère - É difícil dizer sem que se façam experiências. Eu penso que cabe aos educadores descobri-las em função de como se pretende integrar esses elementos da cultura infantil. O que eu posso citar é uma experiência que realizei há cerca de dez anos sobre os Maîtres de l´Univers [He-Man, no Brasil], um desenho animado de muito sucesso. Nós enviamos maciçamente a alunos de escolas maternais, entre 4 e 5 anos, esses personagens para, em seguida, analisarmos o uso que foi feito deles em sala. Se um grupo fez apenas um uso lúdico, a maior parte da classe desenvolveu atividades pedagógicas de todo tipo: manuais, artísticas, construindo o castelo ou a cidade do He-Man. Havia atividades criativas sobre os nomes - os professores pediram aos alunos para criar outros nomes para os personagens. Havia também atividades de leitura e linguagem, demonstrando um forte interesse das crianças por esse universo da leitura, no caso daquelas com um pouco mais de idade, entre 5 e 6 anos.
As atividades que as crianças fazem espontaneamente são as trocas, às vezes até envolvendo dinheiro. Naturalmente, os professores se opõem a isso. Eles não querem que a escola reproduza uma situação de consumismo ou que as lideranças dos alunos se definam pela quantidade de Pokémons de cada um. Como o senhor vê essa questão?
Gilles Brougère - Eu acho que não há nada de novo nisso. Na realidade, essa é uma das chaves do seu sucesso. As práticas de troca, de coleção e de comércio têm como ancestral distante o que fazíamos com as bolinhas de gude. O sistema de trocas é muito antigo e, se não fossem os Pokémons, seria outra coisa. Há uma tradição de colecionar, acumular, trocar e, às vezes, de vender e assim pode-se determinar uma liderança nos grupos. A diferença é que esse universo passa pelo consumo. Mas o que não passa atualmente pelo consumo? A criança não vive em um mundo alheio ao consumo. Só que, nesse caso, o papel dos pais se sobrepõe ao dos educadores. Dar limites ao consumo não é papel do educador, nem interferir na forma como se vê o consumo no seio da família, nem decidir quais são as formas de consumo legítimas ou não.
Como a escola pode regular, limitar essa atividade, sem tolher o interesse e a curiosidade infantis?
Gilles Brougère - A escola pode editar regras sobre os Pokémons ou sobre qualquer outro objeto para evitar que certas práticas acabem surtindo efeitos negativos. Mas elas serão muito mais interessantes se estiverem em relação estreita com as crianças, dependendo da idade delas. Por que fazê-las sob a forma de regras absolutas, impostas pelos adultos às crianças? Por que não perguntar às crianças quais problemas podem ocorrer durante a troca de Pokémons? As crianças são muito sensíveis à idéia de que podem roubar seus Pokémons, que pode haver trocas desiguais. Contrariamente ao que se pensa, elas poderão criar regras tão severas quanto às dos adultos, mas que terão uma lógica aceitável, porque elas terão a impressão de que criaram um sistema. Podemos inclusive imaginar um tribunal, um recurso para os casos em que uma criança considere a troca ilegítima, em que se sinta enrolada ou lesada.
O fato de colecionar e trocar cartas reproduz, nas devidas proporções, a busca pelo saber. As crianças podem muito bem colecionar conhecimentos, trocar informações sobre outros assuntos que não os Pokémons. Mas para isso elas precisariam sentir o mesmo prazer que têm com os brinquedos. Como isso pode ser despertado?
Gilles Brougère - O interesse de estudar os Pokémons é justamente para demonstrar que, às vezes, as crianças têm competências extraordinárias para aprender. O nível de conhecimento exigido para lidar com os Pokémons é muito elevado. Mas atenção: é um conhecimento limitado, baseado na memória. Não é um conhecimento estruturado segundo a lógica da escola. Tenho a impressão que não se trata do mesmo conhecimento que se quer valorizar nas crianças. Ele traz uma visão muito tradicional do saber, própria da aprendizagem japonesa nas escolas primárias. De qualquer forma, as crianças demonstram um esforço para dominar o assunto, acumular informações, o que é um ponto interessante. Mas, na realidade, elas fazem isso por uma finalidade que não é o saber. Elas mobilizam enormes esforços para seu prazer. É como nos esportes, em que as crianças se esforçam ao máximo para progredir numa atividade, mas fazem muito menos esforço físico se o contexto não for tão motivante. Uma característica interessante do divertimento é que muitas vezes ele é uma ocasião de aprendizagem, de conhecimento, de progresso. Eu penso, por exemplo, em um certo número de atividades de lazer: as crianças acumulam conhecimentos extraordinários sobre cantores ou filmes.
Ainda sobre esse progresso que os alunos fazem quando o assunto são os Pokémons, o senhor acredita que isso passa por um processo psicológico, de identificação, que faz os alunos se sentirem mais próximos das aventuras e dos problemas de Ash e de Pikachu que dos professores?
Gilles Brougère - A identificação é efetivamente um elemento entre outros, não é tudo. Eu acho que há um contexto de competição com os outros, assim como há uma concorrência pelo saber. Dominar o universo dos Pokémons é ser reconhecido como igual aos outros. O que é determinante é a socialização entre os pares, seja no universo infantil, seja no adolescente. Para participar de um certo grupo é preciso dominar uma ação, como jogar futebol. Caso contrário, se é posto de lado. Para participar de outro, é preciso conhecer um universo de referência como o dos Pokémons, videogames, canções ou filmes. Quer dizer, o que as crianças procuram é a atenção de um grupo e partilhar de suas atividades. Para isso, elas estão dispostas a esforços enormes, e não é simples reproduzir isso em um ambiente escolar. Não se pode esquecer de que o ambiente escolar precisa funcionar baseado na sociabilização infantil e a responsabilização coletiva das crianças em projetos.
O que quis sugerir, quando falei sobre a eventual identificação das crianças com os Pokémons, é que não dá para reduzir o sucesso desse desenho a um golpe de marketing, ou dá?
Gilles Brougère - Eu penso que não. Sobretudo porque parece claro que a Nintendo não acreditava muito nisso no início. Ela fez o Pokémon como um jogo de videogame, que lhe pareceu muito complicado. Por isso, fez o desenho animado, para que o jogo fosse acessível. Aí, o desenho teve um sucesso considerável e imprevisto. Quando o sistema entrou em marcha, aí, sim, ela investiu muito em marketing. O marketing não explica o sucesso, mas sem ele não haveria essa dimensão mundial e a manutenção desse sucesso. Outros brinquedos são alvo de um marketing desenvolvido sem o mesmo sucesso ou mais breve. Há um encontro entre o que é proposto e a adesão das crianças. Há algumas idéias fortes, sem dúvida, e que são difíceis de compreender para explicar como pode haver um interesse tão forte. O fato é que a sociedade aproveita esse interesse para transformá-lo em sucesso comercial.
De fato, nem todos os produtos têm um sucesso semelhante. Você acredita que esse sucesso se deve também ao fato de a criança poder encontrar informações sobre os Pokémons nas mais variadas mídias: cartas, videogame, filme, desenho animado, Internet, cada uma delas apropriada a uma faixa etária, como se o produto acompanhasse o crescimento da criança...
Gilles Brougère - Acho que isso também não estava previsto. O produto de base é o videogame, o jogo para o GameBoy, dirigido a garotos de cerca de oito anos. O alvo dos Pokémons é muito mais vasto porque aconteceram imprevistos. Graças ao Pikachu, eles despertaram o interesse dos garotos mais jovens e das garotas, que não jogam videogame. O que eu percebo na França é que esse sucesso se estende a outras faixas etárias e a outros grupos que não precisam jogar para se interessar. Uma parte da população é muito ligada mesmo sem jogar videogame e coleciona cartas mesmo sem jogá-las.
Outra constatação é que o sucesso dos Pokémons se deu em escala mundial. É por isso que o senhor faz parte de um grupo de pesquisa internacional, para compreender o fenômeno nessa escala global?
Gilles Brougère - Sim, eu pude perceber isso chegando ao Brasil. É aí que reside o mistério, na minha opinião. Por que eles funcionam tão bem em tantos países? Enquanto temos uma história tipicamente japonesa, é um produto que não destrói as características japonesas, ao contrário de outros fenômenos de massa que desde o início se imaginavam internacionais. Isso não é fácil de explicar. O que tentaremos estudar é a maneira como as crianças em diferentes culturas se apropriam desse universo. Se elas o interpretam da mesma maneira, se o utilizam da mesma forma. A partir daí, tentaremos traçar algumas comparações. Sobre isso eu não posso adiantar mais nada, pois só teremos uma reunião em novembro, quando trocaremos nossos primeiros resultados de pesquisa.
Comentários
Postar um comentário