Dom Helder, irmão e profeta
Lembrar-se de Dom Helder Camara sempre é um prazer. Helder Camara é filho de Fortaleza, cidade na qual nasceu em sete de fevereiro de 1909 e na qual, após estudos nos seminário da Prainha, se ordenou padre em quinze de agosto de 1931. No mesmo ano fundou a legião cearense do trabalho. Ele deixou a sua terra natal em 1936, indo ao Rio de janeiro, depois ao Recife e, em seguida, tornou-se o apóstolo Paulo do século XX, pregando a liberdade e dignidade humana em todo o mundo. Faremos, portanto, jus à história ao prestarmos homenagem a este fortalezense, Helder Camara, a fim de que sua voz ressoe para sempre em nossas mentes, seu modo de ser inspire nossas atitudes e seus gestos dêem rumo às nossas ações.
Recife, 28 de agosto de 1999, 17.00 horas: uma multidão acompanha o carro dos bombeiros desde a Igreja das Fronteiras, cuja sacristia tinha servido durante quase trinta e dois anos como morada de Dom Helder Camara. Em cima do carro o caixão, e nele o corpo do Dom. Um percurso de uns sete, oito quilômetros. O povo cantando, rezando e dando adeus ao seu eterno pastor. O caixão desaparece debaixo das flores de todas as formas e todas as cores, “as rosas da minha vida”, como Dom Helder a elas se referia. Ao chegar à catedral de Olinda e Recife, em Olinda, a multidão aplaude ininterruptamente e, com horas de atraso, a Missa de corpo presente começa a ser celebrada. De repente, em meio às solenidades oficiais, uma pessoa se solta do meio da multidão e coloca a bandeira do MST sobre o caixão do Dom: um profundo silêncio, alguns olhares perturbados, o Núncio Apostólico, presidindo a cerimônia, pergunta a um dos padres concelebrantes: “Que bandeira é esta?!” ..... Mas ninguém ousa remover este símbolo pela justiça e paz duradoura na terra. Mais tarde, ao sepultar o corpo cansado do Dom, a bandeira permanece onde fora colocada, e pouco a pouco integrar-se-á à terra junto com aquele que dedicou a sua vida em defesa daqueles que não “possuem um palmo de terra para sobreviver”, como rezava em sua oração à Mariama na Missa dos Quilombos.
A bandeira do MST é vermelha. Mas Helder Câmara, padre recém-ordenado (15-08-1931) no seminário da Prainha, fundador da legião cearense do trabalho, não tinha vestido, debaixo de sua batina, a camisa verde dos adeptos ao integralismo que estava em moda naqueles dias? Que mudança! Ele mesmo, em uma de suas muitas poesias reflete sobre as guinadas que acontecem na vida da gente, dizendo:
“Aceita as surpresas que transformam teus planos, derrubam teus sonhos,
dão rumo totalmente diverso ao teu dia e, quem sabe, à tua vida.
Não há acaso.
Dá liberdade ao Pai, para que Ele mesmo conduza a trama dos teus dias ..”
É isso que Dom Helder fez em toda a sua vida: deixar-se moldar e modular por Deus. Que Deus? O Deus dos pequenos, dos pobres, dos maltrapilhos, dos sem terra, sem teto, sem roupa, sem participação no assim chamado progresso do mundo. É o Deus dos povos da América Latina, chamada por Dom Helder de “a vila cristã do mundo pobre”. Na sua “Sinfonia dos Dois Mundos”, ele analisa que a miséria é a violência n.° 1 deste mundo pobre, afirmando: “Miséria que engloba sub-habitação, sub-trabalho, sub-diversão, sub-saúde, sub-vida, opressão: são estas as formas de violência que geram todas as outras”.
Dom Helder via-se presente neste mundo. Era bispo da Igreja, mas era bispo para o mundo, tornando-se “sal da terra e luz do mundo” (cf. Mt 5, 13.14), como o Evangelho de Cristo manda ser todos os seus enviados. Por certo foi por isso que o nosso irmão, Padre Manfredo Araújo de Oliveira, disse, em 1999: “Dom Helder não cabe na Igreja!”
Ele, juntamente com o nosso querido e saudoso Dom Aloísio Lorscheider e tantos outros, era um dos arquitetos de uma Igreja presente no mundo a partir e no meio dos pobres. Teve participação nos grandes momentos da Igreja, como a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em 1952, o Concílio Vaticano II nos anos sessenta, a Conferência do Episcopado Latino Americano em Medellín em 1968, colocando sempre como tema central o mundo dos pobres. Na vida destes, ele não queria ser somente mais um praticando a caridade, mas levava os próprios pobres a entenderem as causas da pobreza, da miséria, do descaso, apontando para as estruturas sociais, os mecanismos econômicos e a falta de compromissos políticos. Ele disse: “Homem, meu irmão, que fizeste dos pobres? Que fizeste da Ásia, da África, da América Latina da terra batida, da criança ensolarada?”. Foi por esta opção radical e irreversível em sua vida pessoal, nas suas palestras e discursos pelo mundo afora, que chegava a dizer, entre outros: “Se eu dou comida aos pobres, eles me chamam de santo. Se eu pergunto por que os pobres não têm comida, eles me chamam de comunista”, e, mais tarde, exclamou: “Dizem que é comunismo, mas é ..... é Evangelho, Mariama!”
Nada o Dom fazia sem consultar seu maior amigo: o próprio Cristo, com quem manteve longas conversas na madrugada de todos os dias, diante do altar de quem dançava, inspirado por quem escrevia seus discursos, suas poesias, suas cartas e no altar de quem derramava lágrimas todas as vezes quando celebrava o amor de Cristo vivido na celebração eucarística, isto é na partilha do pão, gesto este que continuará “mistério”, enquanto a humanidade toda não aprenda a partilhar seus dons espirituais e materiais.
Encontramos deste modo o profeta Helder.
Profeta é aquele que, na calada da noite, escuta seu Deus a fim de saber a quem se dirigir e o que falar, pois o profeta é aquele que empresta sua língua a Deus a fim de que Este fale.
O profeta é livre. Dom Helder, mesmo que vivesse, como nós, dentro das estruturas da sociedade e da igreja, as mesmas para ele não pareciam existir, embora, como testemunha um amigo confidente dele, “ele tenha sofrido um bocado por causa de um determinado funcionamento delas.” Um dia, Dom Jacques Gaillot, bispo de Partênia (Norte da África), amigo de Dom Helder, dizia: “Quando a gente tem medo não é livre, e quando é livre mete medo!” O Dom era livre, e aqueles que promoveram as injustiças e a opressão em nosso país, seja durante a ditadura como anterior e posterior a ela, exatamente por causa desta liberdade, o temiam, enquanto ele, Helder, não tinha o que temer!
O profeta testemunha! Dom Helder optou livremente por uma vida austera, simples, junto dos seus irmãos, os pobres, seguindo os exemplos de dois gigantes do amor aos pobres na história: São Francisco de Assis e São Vicente de Paulo. O testemunho do Dom da Paz brotava justamente do perfeito equilíbrio, que havia nele, entre contemplação e ação.
Hoje nós temos saudade de profetas como Dom Helder, Dom Aloísio, as vozes e os testemunhos do passado recente. Mas não é só saudade que sentimos. Somos convencidos também de que o mundo sempre necessita de profetas. Nós deles precisamos!
Que a sociedade e as igrejas permitam que haja sempre homens e mulheres que, livres, impedidos e com os pés no chão, na vida real, possam testemunhar o dom da “vida em abundância”, cantado por Padre Reginaldo Veloso de Recife, como “o sonho mais lindo de Deus”. Dom Helder realizou aquela parte deste sonho de Deus que lhe coube. A concretização da nossa parte do sonho de Deus será a nossa homenagem verdadeira a Dom Helder Câmara.
Dom Helder nos dignifica a todos, cearenses ou amantes desta terra. Neste sentido consideramos relevantes todas as ações que tornem viva a memória deste homem, junto ao povo fortalezense.
Geraldo Frencken (membro do "O Grupo")
Lembrar-se de Dom Helder Camara sempre é um prazer. Helder Camara é filho de Fortaleza, cidade na qual nasceu em sete de fevereiro de 1909 e na qual, após estudos nos seminário da Prainha, se ordenou padre em quinze de agosto de 1931. No mesmo ano fundou a legião cearense do trabalho. Ele deixou a sua terra natal em 1936, indo ao Rio de janeiro, depois ao Recife e, em seguida, tornou-se o apóstolo Paulo do século XX, pregando a liberdade e dignidade humana em todo o mundo. Faremos, portanto, jus à história ao prestarmos homenagem a este fortalezense, Helder Camara, a fim de que sua voz ressoe para sempre em nossas mentes, seu modo de ser inspire nossas atitudes e seus gestos dêem rumo às nossas ações.
Recife, 28 de agosto de 1999, 17.00 horas: uma multidão acompanha o carro dos bombeiros desde a Igreja das Fronteiras, cuja sacristia tinha servido durante quase trinta e dois anos como morada de Dom Helder Camara. Em cima do carro o caixão, e nele o corpo do Dom. Um percurso de uns sete, oito quilômetros. O povo cantando, rezando e dando adeus ao seu eterno pastor. O caixão desaparece debaixo das flores de todas as formas e todas as cores, “as rosas da minha vida”, como Dom Helder a elas se referia. Ao chegar à catedral de Olinda e Recife, em Olinda, a multidão aplaude ininterruptamente e, com horas de atraso, a Missa de corpo presente começa a ser celebrada. De repente, em meio às solenidades oficiais, uma pessoa se solta do meio da multidão e coloca a bandeira do MST sobre o caixão do Dom: um profundo silêncio, alguns olhares perturbados, o Núncio Apostólico, presidindo a cerimônia, pergunta a um dos padres concelebrantes: “Que bandeira é esta?!” ..... Mas ninguém ousa remover este símbolo pela justiça e paz duradoura na terra. Mais tarde, ao sepultar o corpo cansado do Dom, a bandeira permanece onde fora colocada, e pouco a pouco integrar-se-á à terra junto com aquele que dedicou a sua vida em defesa daqueles que não “possuem um palmo de terra para sobreviver”, como rezava em sua oração à Mariama na Missa dos Quilombos.
A bandeira do MST é vermelha. Mas Helder Câmara, padre recém-ordenado (15-08-1931) no seminário da Prainha, fundador da legião cearense do trabalho, não tinha vestido, debaixo de sua batina, a camisa verde dos adeptos ao integralismo que estava em moda naqueles dias? Que mudança! Ele mesmo, em uma de suas muitas poesias reflete sobre as guinadas que acontecem na vida da gente, dizendo:
“Aceita as surpresas que transformam teus planos, derrubam teus sonhos,
dão rumo totalmente diverso ao teu dia e, quem sabe, à tua vida.
Não há acaso.
Dá liberdade ao Pai, para que Ele mesmo conduza a trama dos teus dias ..”
É isso que Dom Helder fez em toda a sua vida: deixar-se moldar e modular por Deus. Que Deus? O Deus dos pequenos, dos pobres, dos maltrapilhos, dos sem terra, sem teto, sem roupa, sem participação no assim chamado progresso do mundo. É o Deus dos povos da América Latina, chamada por Dom Helder de “a vila cristã do mundo pobre”. Na sua “Sinfonia dos Dois Mundos”, ele analisa que a miséria é a violência n.° 1 deste mundo pobre, afirmando: “Miséria que engloba sub-habitação, sub-trabalho, sub-diversão, sub-saúde, sub-vida, opressão: são estas as formas de violência que geram todas as outras”.
Dom Helder via-se presente neste mundo. Era bispo da Igreja, mas era bispo para o mundo, tornando-se “sal da terra e luz do mundo” (cf. Mt 5, 13.14), como o Evangelho de Cristo manda ser todos os seus enviados. Por certo foi por isso que o nosso irmão, Padre Manfredo Araújo de Oliveira, disse, em 1999: “Dom Helder não cabe na Igreja!”
Ele, juntamente com o nosso querido e saudoso Dom Aloísio Lorscheider e tantos outros, era um dos arquitetos de uma Igreja presente no mundo a partir e no meio dos pobres. Teve participação nos grandes momentos da Igreja, como a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em 1952, o Concílio Vaticano II nos anos sessenta, a Conferência do Episcopado Latino Americano em Medellín em 1968, colocando sempre como tema central o mundo dos pobres. Na vida destes, ele não queria ser somente mais um praticando a caridade, mas levava os próprios pobres a entenderem as causas da pobreza, da miséria, do descaso, apontando para as estruturas sociais, os mecanismos econômicos e a falta de compromissos políticos. Ele disse: “Homem, meu irmão, que fizeste dos pobres? Que fizeste da Ásia, da África, da América Latina da terra batida, da criança ensolarada?”. Foi por esta opção radical e irreversível em sua vida pessoal, nas suas palestras e discursos pelo mundo afora, que chegava a dizer, entre outros: “Se eu dou comida aos pobres, eles me chamam de santo. Se eu pergunto por que os pobres não têm comida, eles me chamam de comunista”, e, mais tarde, exclamou: “Dizem que é comunismo, mas é ..... é Evangelho, Mariama!”
Nada o Dom fazia sem consultar seu maior amigo: o próprio Cristo, com quem manteve longas conversas na madrugada de todos os dias, diante do altar de quem dançava, inspirado por quem escrevia seus discursos, suas poesias, suas cartas e no altar de quem derramava lágrimas todas as vezes quando celebrava o amor de Cristo vivido na celebração eucarística, isto é na partilha do pão, gesto este que continuará “mistério”, enquanto a humanidade toda não aprenda a partilhar seus dons espirituais e materiais.
Encontramos deste modo o profeta Helder.
Profeta é aquele que, na calada da noite, escuta seu Deus a fim de saber a quem se dirigir e o que falar, pois o profeta é aquele que empresta sua língua a Deus a fim de que Este fale.
O profeta é livre. Dom Helder, mesmo que vivesse, como nós, dentro das estruturas da sociedade e da igreja, as mesmas para ele não pareciam existir, embora, como testemunha um amigo confidente dele, “ele tenha sofrido um bocado por causa de um determinado funcionamento delas.” Um dia, Dom Jacques Gaillot, bispo de Partênia (Norte da África), amigo de Dom Helder, dizia: “Quando a gente tem medo não é livre, e quando é livre mete medo!” O Dom era livre, e aqueles que promoveram as injustiças e a opressão em nosso país, seja durante a ditadura como anterior e posterior a ela, exatamente por causa desta liberdade, o temiam, enquanto ele, Helder, não tinha o que temer!
O profeta testemunha! Dom Helder optou livremente por uma vida austera, simples, junto dos seus irmãos, os pobres, seguindo os exemplos de dois gigantes do amor aos pobres na história: São Francisco de Assis e São Vicente de Paulo. O testemunho do Dom da Paz brotava justamente do perfeito equilíbrio, que havia nele, entre contemplação e ação.
Hoje nós temos saudade de profetas como Dom Helder, Dom Aloísio, as vozes e os testemunhos do passado recente. Mas não é só saudade que sentimos. Somos convencidos também de que o mundo sempre necessita de profetas. Nós deles precisamos!
Que a sociedade e as igrejas permitam que haja sempre homens e mulheres que, livres, impedidos e com os pés no chão, na vida real, possam testemunhar o dom da “vida em abundância”, cantado por Padre Reginaldo Veloso de Recife, como “o sonho mais lindo de Deus”. Dom Helder realizou aquela parte deste sonho de Deus que lhe coube. A concretização da nossa parte do sonho de Deus será a nossa homenagem verdadeira a Dom Helder Câmara.
Dom Helder nos dignifica a todos, cearenses ou amantes desta terra. Neste sentido consideramos relevantes todas as ações que tornem viva a memória deste homem, junto ao povo fortalezense.
Geraldo Frencken (membro do "O Grupo")
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