ARTIGO: Prestação de contas na era de ‘desinformação’ — indo além da transparência na América Latina e no Caribepor ONU Brasil |
Por Luis Felipe López-Calva, secretário-geral assistente da ONU e diretor regional do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para América Latina e Caribe
A transparência é um elemento crucial para tornar os governos mais efetivos. Tornar as informações disponíveis cria as bases para uma melhor prestação de contas aos cidadãos. Em décadas recentes, a transparência aumentou na América Latina e no Caribe. De acordo com dados do Global Right to Information Rating, 23 países da região têm leis que garantem o direito dos cidadãos ao acesso à informação. A Colômbia foi o primeiro país da região que aprovou uma lei do tipo, em 1985, e São Vicente e Granadinas é o país mais recente a aprovar, em 2018, lei nesse sentido.
Embora a transparência seja condição necessária para promover a prestação de contas, ela não é suficiente. Podemos pensar na transparência como um primeiro passo. Enquanto a transparência torna as informações disponíveis, também precisamos dar-lhes publicidade para tornar essas informações acessíveis e também necessitamos de mecanismos de prestação de contas. A informação por si só não é válida sem prestação de contas e sem a devida publicidade. Se a informação não alcança os públicos interessados, seus efeitos não são somente negligenciados, mas também podem causar potenciais danos. Por exemplo, vemos, infelizmente, muitos casos em nossa região em que as pessoas podem acessar informações detalhadas sobre casos de corrupção, mas nada acontece com os responsáveis. Isso leva à frustração e destrói a confiança.
Podemos pensar nessa progressão, da transparência à prestação de contas, como “a cadeia de valor da informação”. Recentemente, uma forma pela qual a cadeia de valor da informação foi quebrada na América Latina e no Caribe foram a criação e a disseminação intencionais de informações falsas (o que é conhecido como “desinformação”). Em muitos casos, esses “pseudo-fatos” são criados com intenções políticas e visam audiências específicas, com a intenção de induzir a certos resultados (por exemplo, influenciando o comportamento de voto). Esse sistema tem sido chamado de indústria das “fake news” – um termo amplamente usado por políticos em tempos recentes. É importante notar que a informação falsa também pode ser disseminada de forma não intencional (o que é conhecido como “perda de informação”).
O aumento da desinformação e da “perda de informação” tem sido facilitado pelo avanço da tecnologia. A tecnologia – em particular, o aumento do número de redes sociais e de aplicativos de troca de mensagens – tem reduzido o custo de disseminar informações para amplas audiências. Isso tornou a indústria da “publicidade” mais competitiva e criou uma nova dinâmica social, na qual as pessoas frequentemente consideram o acesso a informação como algo equivalente a conhecimento. Enquanto o conhecimento é difícil de construir e de manter constantemente atualizado, a informação se tornou fácil de obter, e os debates públicos são cada vez mais baseados em falsas – e, com frequência, deliberadamente falsas – informações.
De fato, um estudo recente de acadêmicos do MIT (o Instituto de Tecnologia de Massachusetts) descobriu que notícias falsas se disseminam muito mais rapidamente do que notícias verdadeiras – e esse efeito é particularmente visível com notícias falsas sobre política (na comparação com notícias falsas sobre temas como o terrorismo, desastres naturais, ciência, lendas urbanas ou informação financeira).
De acordo com o Relatório de Notícias Digitais do Instituto Reuters, cidadãos da América Latina e do Caribe enfrentam uma exposição elevada a notícias falsas e estão muito preocupados com quais notícias são verdadeiras e quais são falsas. Em cada um dos quatro países da região analisados no estudo (Brasil, Chile, México e Argentina), mais de 35% dos entrevistados afirmaram que foram expostos a notícias completamente inventadas na semana interior – com o índice alcançando até 43% no México. Além disso, mais de 60% dos entrevistados declararam que estão bastante ou extremamente preocupados com o que é real e o que é falso na internet quando o assunto são notícias – com o índice alcançando 85% no Brasil.
Esse alto nível de preocupação é consistente com experiências recentes com a “desinformação” política na região – por exemplo, o uso de robôs automatizados para influenciar a opinião pública no Brasil, Argentina e Venezuela. Esse problema vem acompanhado da preocupação com as potenciais consequências, como o agravamento da polarização política ou a erosão da confiança na mídia. De fato, nas últimas poucas décadas, a disseminação da informação falsa por partidos políticos e a polarização política cresceram na América Latina e no Caribe. Esse é um desafio não somente da região, mas também de muitas regiões em todo o mundo. Essa preocupação global se reflete no tema deste ano escolhido para o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa – que teve, como foco, o jornalismo e as eleições em tempos de “desinformação”.
Muitos dos países da América Latina e do Caribe passarão por eleições presidenciais neste ano: Argentina, Bolívia, Guatemala e Uruguai. Há uma preocupação na região com o modo como as campanhas de desinformação — combinadas ao microdirecionamento de mensagens políticas e a uma sofisticada publicidade online por meio de redes sociais e plataformas online — podem afetar o resultado das eleições.
Há muito o que podemos fazer nessa área para proteger a cadeia de valor da informação e a qualidade das eleições — como acordos de “campanhas limpas” entre os partidos políticos, a criação de serviços independentes de checagem de notícias, uma maior fiscalização da parte das empresas de redes sociais e a promoção da “alfabetização” informacional entre os cidadãos. Na América Latina e no Caribe, essas iniciativas ainda estão no início, mas estão crescendo. É importante reconhecer, porém, que combater as campanhas de desinformação exigirá ações coordenadas de múltiplos atores interessados, como os tribunais eleitorais, a mídia, a sociedade civil, a academia e as empresas de tecnologia (como o Facebook, Google, WhatsApp e Twitter). Sem uma forte coalizão entre os atores, será difícil reparar com sucesso a cadeia de valor da informação e alcançar a prestação de contas.
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