O racismo faz
mal à saúde
Fabiana
Frayssinet, da IPS
Entre a
emergência de uma parturiente negra e uma branca, o médico brasileiro escolhe a
branca porque “as negras são mais resistentes à dor e estão acostumadas a
parir”. As convenções culturais e sociais brasileiras “imputam ao negro
condições de estereótipo, que fazem com que não tenha as mesmas garantias de
tratamento da saúde que um branco”, disse à IPS a psicóloga Crisfanny Souza
Soares, da Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População Negra. Estes
estereótipos refletem um racismo que faz mal à saúde e que uma campanha tenta
extirpar do sistema hospitalar brasileiro.
Dos 192 milhões
de brasileiros, metade se reconhece como negra. A Mobilização Nacional
Pró-Saúde da População Negra, foi lançada este ano por organizações de
afro-brasileiros, com apoio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).
Sob o lema “Vida longa, com saúde e sem racismo”, o objetivo da campanha é a
saúde integral em todas as fases da vida, incentivando a sociedade, e em
particular o sistema sanitário, a combater a discriminação para reduzir os
altos índices de mortalidade da população de origem africana.
“Praticamente,
todos os índices de saúde da mulher negra são piores do que os da branca. Em
uma consulta sobre câncer de mama, as negras são menos apalpadas do que as
brancas; e recebem menos anestesia no parto”, afirma Crisfanny. O Ministério da
Saúde, que desde 2006 impulsiona uma política nacional integral para este grupo
de população no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), realiza estudos para
detectar este tipo de situação.
“A ideia de que
a população negra é mais resistente à dor e tem melhores condições de conviver
com a doença está presente em todo o sistema de saúde, desde os técnicos de
enfermagem até os médicos”, afirmou Deise Queiroz, coordenadora da Articulação
de Jovens Negras, da Bahia. Ela conhece bem isso, especialmente porque sua mãe,
que sofre de diabete e pressão alta, deve recorrer com frequência ao sistema
público de saúde. Segundo a ativista, o SUS, que foi um modelo de
democratização do serviço de saúde, hoje não consegue atender tanta demanda, e
“as atitudes racistas ficam mais evidentes”.
A Constituição
determina que a saúde é um direito universal e o Estado tem o dever de
proporcioná-la. O SUS estabelece que “todas as pessoas têm direito ao
tratamento de qualidade humanizado e sem nenhuma discriminação”. Entretanto, o
racismo se infiltra aberta ou sutilmente. “Ele se incorpora nas condições de
vida da população, na organização dos serviços de saúde e na formulação de
políticas”, explicou à IPS a representante auxiliar do UNFPA no Brasil,
Fernanda Lopes. “Por isto é necessário construir políticas específicas de
equidade”, afirmou.
Um estudo
epidemiológico do Ministério da Saúde apresenta informação específica para
ajudar a preencher esses vazios, ao comparar indicadores como assistência
pré-natal por raça, cor e etnia. Também analisa outros aspectos, como o direito
e o acesso a planejamento familiar, que é mais precário entre as
afrodescendentes. Precisamente este aspecto é o centro do informe mundial do
UNFPA, apresentado no dia 14, com o título Sim à Opção, não ao Acaso –
Planejamento da Família, Direitos Humanos e Desenvolvimento.
Por exemplo, 19%
das crianças nascidas vivas são de mães adolescentes brancas entre 15 e 19
anos. Contudo, a incidência de gravidez em adolescentes é de 29% entre as
jovens afro-brasileiras da mesma faixa etária. Além disso, enquanto 62% das
mães de crianças brancas informavam ter realizado sete ou mais consultas
pré-natais, apenas 37% das mães de recém-nascidos mulatos e negros realizaram
essa quantidade de exames antes do parto.
A mortalidade
infantil também apresenta disparidades. O risco de uma criança negra ou mulata
morrer antes dos cinco anos de idade por doenças infecciosas e parasitárias é
60% maior em relação a uma criança branca. E o de morte por desnutrição é 90%
superior. O estudo também constatou que morrem mais grávidas afrodescendentes
do que brancas por causas vinculadas à gestação, como hipertensão.
“Dizem que os
piores índices sanitários da população negra se deve ao fato de a maioria ser
pobre e, por isso, mais vulnerável”, apontou Crisfanny. Porém, não se pode
negar outras variáveis estritamente racistas, advertiu. “Se em um hospital
vemos dois jovens baleados, é mais fácil o imaginário cultural colocar o branco
no papel de vítima, enquanto o negro estaria ali porque se envolveu em um
crime”, ressaltou a psicóloga, afirmando que às vezes essa referência “faz com
que um profissional estabeleça prioridades no atendimento”.
Outra
preocupação se refere às doenças prevalentes na população afrodescendente, como
anemia falciforme, diabete mellitus Tipo II e hipertensão, que o sistema
sanitário não está preparado para abordar de maneira específica. As mulheres
negras têm 50% mais possibilidades de desenvolver esse tipo de diabete, com o
agravante de a hipertensão arterial entre elas ser duas vezes maior do que na população
em geral.
O mesmo ocorre
com a anemia falciforme, que poderia ser detectada nos recém-nascidos. Segundo
a Mobilização Nacional Pró-Saúde, cerca de 3.500 crianças brasileiras nascem a
cada ano com essa enfermidade, fazendo dela a doença genética de maior
incidência no país. “A população negra morre, em geral, mais cedo, e suas
mortes por causas evitáveis são mais frequentes”, pontuou Fernanda. Por isso,
uma política para combater a discriminação na saúde “chega para minimizar o
impacto das desigualdades históricas mediante estratégias de ação afirmativa”,
acrescentou.
O UNFPA
contribui com o governo e o movimento negro para fortalecer essa política e a
formação profissional que deve acompanhá-la. “O desafio é responder por que, em
um país onde a população negra representa 50,3% do total, temos um quadro
sanitário tão diferenciado” entre negros e brancos, admite o Ministério da
Saúde.
(Envolverde/IPS)
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