Uma lição de Coutinho sobre o silêncio




Duas cenas de filmes distintos de Eduardo Coutinho levaram o cineasta a uma boa reflexão sobre um aspecto meio assustador, mas que também pode ser muito rico, em uma conversa: o silêncio. Um deles integra o famoso Cabra Marcado para Morrer, iniciado em 1964 como obra de ficção, retomado como documentário 17 anos depois e concluído em 1984. O outro faz parte de Peões, documentário de 2004.


Ambos foram selecionados por Eduardo Escorel, mediador do encontro com Coutinho neste sábado. Um dos aspectos que acaba unindo os dois trechos, como apontou Escorel, é que, a certa altura, tanto Mariano, de Cabra...”, quanto Geraldo, de “Peões”, permanecem calados diante de Coutinho, enquanto a câmera segue filmando.


No primeiro, Mariano, que interpretou o líder camponês João Pedro Teixeira (assassinado em 1962) nas gravações de 64, reencontrava Coutinho anos depois e começava a falar de sua relação com o conteúdo do filme, quando o cineasta o interrompeu para checar uma questão técnica de áudio. Em seguida, o cineasta se voltou novamente para ele, mas Mariano continuou quieto. Diante do silêncio do entrevistado, Coutinho tentava estimulá-lo, com convites como “pode falar” e “não precisa ter medo”.


“Praticamente nunca revejo filmes que faço. Por uma razão: ‘consummatum est’. Está definitivo, já passou. Mas esse [trecho] é um dos casos que me dá um arrependimento. Fiz um grande erro: interromper uma cena porque o som está ruim. Não sei o que me deu, por que fiz isso. O silêncio dele parece ter sido provocado porque eu o interrompi. Isso atrapalhou”, afirmou Coutinho, que completa 80 anos neste ano.


Já no trecho de , quem aparece é Geraldo, o último entrevistado do filme. Ele conta que, embora orgulhoso do trabalho que realizou, não deseja que o filho siga pelo mesmo caminho que ele. Melhor seria que o menino se tornasse engenheiro, por exemplo. A certa altura, para de falar. Dessa vez, Coutinho não insiste. Espera que Geraldo retome a conversa. Até que o entrevistado lhe lança uma pergunta desconcertante: ‘você já foi peão?’


“Na primeira, você estava à beira de um ataque de nervos. Nesse aqui, está sereno, tranquilo, e o silêncio é extremamente significativo”, comentou Escorel.


“Tive outras experiências antes e depois, e fui aprendendo com a vida que, quando o cara ficava em silêncio e caía no fundo do poço, era tão duro que eu estendia a mão, dava a palavra e outro saía do poço. E eu dizia para mim mesmo: um dia eu vou deixar o cara no fundo do poço porque ele vai conseguir sair, não vai morrer disso. Quando esse homem [Geraldo] entra no poço, passam-se 23 segundos, e eu aguento. Tive que aguentar olhando para ele. É um silêncio que não sei onde está... Ele está revendo a vida dele. Quando vem com essa pergunta, é extraordinária”, disse Coutinho. “Ele não quer que o filho dele seja peão. Quando pergunta [se eu já fui], diz tudo: ele não pode transmitir a experiência de ser peão.”


Escorel também observou, nesse mesmo trecho de Peões, como Coutinho vai questionando Geraldo a respeito do significado das palavras que o entrevista usa. O que significa peão, por exemplo? E depois, mais especificamente: O que significa ser peão de pé no chão? “Não se pode tomar como pressuposto que as palavras queiram dizer a mesma coisa para o entrevistado e o espectador. E parece ser esse o caminho que você pensa desenvolver”, comentou Escorel. Coutinho concordou: “Ele faz a distinção entre o peão e o funcionário pago, que é aquele que pode ter uma folga para ir ao médico, por exemplo. Ele deu sentido ao nome do filme, que havia sido escolhido antes.”


Arrancando várias risadas do público, o cineasta também respondeu a perguntas sobre como escolhe os participantes de seus filmes. “Saber contar é essencial”, disse. “Tem caras que viajam pelo mundo inteiro, são assaltados no Egito, viram deus na Índia, aí contam para você, e você diz: que saco. E tem outros que passaram a vida inteira como carteiros e falam da vida de um jeito maravilhoso.”


A conversa passou ainda por seus textos para a cômica seção de astrologia da revista Piauí, que Coutinho assinou (como todos os colaboradores dessa seção) com o pseudônimo de Chantecler, e pela relação do cineasta com religião. “Eu me considero um materialista mágico. Eu queria acreditar em Deus e tal, não consigo. Mas quando o avião entra em turbulência, eu peço ajuda para todos os santos.”


O encontro acabou com uma questão sobre os protestos que têm ocorrido no país. “Isso me provocou muitas questões, mas não vou dizer todas agora. Senti uma surpresa extraordinária, mas euforia, não”, disse Coutinho. “Espero que essa surpresa seja duradoura.”

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