Pessoas com deficiência e agronegócio no Brasil: uma semente para reflexão

Por Ana Paula Porfírio da Silva
Pesquisadora do IEA
anapaula@iea.sp.gov.br
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ONU, 2006.
Cerca de 10% da população mundial possui algum tipo de deficiência. Destas pessoas, 80% vivem em países em desenvolvimento1. Em países mais pobres a prevalência da deficiência aumenta para cerca de 20% dos habitantes, valor que só não é maior pelas dificuldades em realizar amostragens e qualidade das informações. As pessoas com deficiência constituem a maior minoria do mundo.
No Brasil o número de pessoas com deficiência é de 23,92% da população, segundo dados do CENSO 20102, o que equivale ao total de habitantes da Argentina. A distribuição entre unidades da Federação é praticamente a mesma em áreas urbanas e rurais3. Pessoas com deficiência são diferentes e heterogêneas, e o universo desta população vai muito além do estereótipo de usuários de cadeiras de rodas, cegos, surdos e amputados.
‘A deficiência é complexa, dinâmica, multidimensional e questionada’4, sendo reconhecidamente um ‘conceito em evolução’, segundo a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência – CDPD (2006), a qual enfatiza que  a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas5.
A Convenção da ONU sobre os Direitos das pessoas com deficiência, como é conhecida, é um tratado internacional aprovado na Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 2006, assinado por mais de 100 países em 2007, dentre os quais o Brasil, e ratificado pelo Congresso Nacional em 2008, o que lhe confere no país valor de norma constitucional. Visa promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por toda a pessoa com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
Importantes considerações para elaboração da Convenção foram: a preocupação com as barreiras contra a participação como membros da sociedade e violação de seus direitos humanos assegurados, como o acesso ao trabalho; e o reconhecimento das valiosas contribuições existentes e potenciais destas pessoas ao bem-estar comum e à diversidade em conjunto com a participação na sociedade, que resulta em significativo avanço do desenvolvimento humano, social e econômico de suas comunidades.
Chegando à relação da deficiência com a agricultura e/ou produção agropecuária no Brasil, a preocupação com tais direitos seria aparentemente desnecessária, considerando que, para o setor as pessoas com deficiência, enquanto consumidores são cidadãos indistintamente iguais a qualquer outro ser humano que respire no planeta, pois consomem e fazem uso de alimentos, fibras e produtos de origem animal, exatamente como toda a população faz ou deveria ter direito de fazer.
No entanto, esta é uma visão oblíqua desta associação. A agricultura é de fato justa ao ofertar produtos para todos os seres humanos indistintamente. Existe, porém, um desequilíbrio na relação com as pessoas com deficiência ao se considerar que a utilização da mão de obra de tais pessoas no sistema de produção agropecuário é praticamente inexistente, e esta é infelizmente a realidade brasileira. Em suma, há o fornecimento (também) para as pessoas com deficiência, mas isso é feito sem a participação da pessoa com deficiência no sistema de produção, situação que é a antítese do tema principal da luta por tais direitos, que é ‘Nada por nós, sem nós’6.
Estudo feito por uma universidade americana, em 2003, levantou que a principal causa para esta baixa inserção deve-se à crença, por parte de um terço do total de empregadores entrevistados, da qual as pessoas com deficiência não podem efetivamente realizar as tarefas do trabalho exigido; o segundo motivo para a não contratação de pessoas com deficiência foi o medo do custo de instalações especiais7.
O mundo busca o desenvolvimento sustentável, e a inclusão de pessoas é condição sine qua non para este modelo, que por definição prevê a integração entre economia, sociedade e meio ambiente e que o crescimento econômico deve levar em consideração a inclusão social e a proteção ambiental8.
Outros países já se sensibilizaram para esta situação e desenvolveram programas destinados às pessoas com deficiência na área agrícola. É o caso dos Estados Unidos, onde desde 1991 existe o programa chamado AgrAbility9, no qual o governo, juntamente com universidades e a sociedade civil, por meio de projetos específicos, promove a reabilitação e inserção da pessoa com deficiência no trabalho e vida rural. Atualmente o Agrability está presente em 22 estados americanos, e desde sua origem já atendeu diretamente mais de 11 mil pessoas. O orçamento para a execução das atividades equivale a 0,000126% do total de despesas federais norte-americanas. Se a mesma proporção fosse utilizada no Brasil, teríamos disponível um valor equivalente a 5,6% do que foi repassado como ‘transferência de recurso da união para manutenção e operação de partidos políticos’, ao partido que recebeu mais recursos no ano de 201110.
Dentre os resultados obtidos pelo AgrAbility, destaca-se que 84% dos clientes (como são denominadas as pessoas com deficiência que aderiram ao programa, o que elimina o enfoque assistencialista) foram capazes de gerenciar suas propriedades com mais sucesso, 87% foram capazes de continuar morando em suas casas ou propriedades rurais e 73% foram capazes de operar maquinários agrícolas com mais sucesso11.
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) possui um banco de dados com informações básicas e estatísticas sobre as condições de subsistência das pessoas com deficiência em áreas rurais, o que inclui mão de obra, principalmente nos países em desenvolvimento. Em consulta recente a estes dados, foram encontrados projetos de inclusão pelo trabalho em área rural em somente 21 dos 191 países membros12. Na Tailândia, o programa ‘Mushroom Training for Disabled People’ capacita pessoas com deficiência visual para o cultivo de cogumelos (Figura 1). Nos Emirados Árabes há um centro especializado em reabilitação de pessoas com deficiência para capacitação em diversas atividades agrícolas, o Zayed Agricultural Centre for Rehabilitation of Disabled Persons, entre outros exemplos que expõem que é possível a inserção.
Figura 1 - Imagem de um Homem Deficiente Visual Tailandês Colhendo Cogumelos Cultivados em Substrato dentro de uma Sala Escura.
Figura 1 - Imagem de um Homem Deficiente Visual Tailandês Colhendo Cogumelos Cultivados em Substrato dentro de uma Sala Escura. - Fonte: Christian Foundation for the Blind in Thailand. Disponível em . Acesso em 27 de setembro de 2012.Fonte: Christian Foundation for the Blind in Thailand.
O Brasil avançou muito na consolidação destes direitos em geral e é um país reconhecido internacionalmente por suas ações e políticas de desenvolvimento inclusivo. A Lei 8.213 de 1991, conhecida como lei de cotas para contratação de pessoas com deficiência, é um exemplo de intervenção bem sucedida, mas atinge somente empresas com mais de 100 funcionários.
Em São Paulo, foi criada em 2008 a primeira secretaria de Estado orientada a garantir o acesso das pessoas com deficiência a todos os bens, produtos e serviços existentes na sociedade, a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SEDPcD). Atuando em parceria com outros órgãos e segmentos mais conscientizados, a SEDpcD já fez avançar muito a questão da inserção pelo trabalho, mas em meio ao setor rural ainda existe uma enorme lacuna pela pouca atenção que este dá à causa.
Existe muito a ser feito por parte da sociedade e governo para que a inclusão e a permanência das pessoas com deficiência no campo sejam planejadas e possibilitadas com a dignidade que lhes é de direito.

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