Fernando Pessoa é festejado em Paraty




Maria Bethânia + Cleonice Berardinelli + Fernando Pessoa. A expectativa não podia ser maior. Ainda assim, foi superada. Ecoaram risadas, flagraram-se olhos marejados, declarações de amor chegaram ao palco nos papeis dedicados a perguntas do público. Júlio Diniz, moderador da mesa Lendo Pessoa à beira-mar, realizada na noite desta sexta (5) traduziu para um auditório completamente lotado aquela que parecia ser a sensação geral: “Essa é uma daquelas noites que quem viu, viu. E quem não viu vai morrer de inveja de não ter visto”.

O tom foi dado já no início, quando todos se levantaram para aplaudir Cleonice Berardinelli, de 96 anos, que atravessou o palco a passinhos miúdos, apoiada em Diniz. Uma das maiores especialistas na obra de Fernando Pessoa, membro da Academia Brasileira de Letras, ela se acomodou na cadeira e, com páginas e páginas cheias de poemas à sua frente, fez o convite: “Vocês terão agora, diante dos olhos, duas mulheres unidas por paixões complementares, e ao mesmo tempo paralelas, que norteiam suas vidas. A música, para a mais jovem; e a poesia, para a mais velha. Seus nomes: Maria Bethânia e Cleonice. Ou, mais carinhosamente, Bethânia e dona Cleo.”

O poema inaugural, “Ode à Noite”, de Álvaro de Campos (um dos principais heterônimos de Pessoa), foi escolhido por Bethânia, que entrou no palco toda de branco, da echarpe aos sapatos, e se sentou ao lado de Cleonice.

Vieram, na sequência, dezenas de poemas de outros dois heterônimos, Ricardo Reis e Alberto Caieiro, e, claro, do ortônimo, Fernando Pessoa. Eram declamados ora por uma, ora por outra, ora num afinado jogral, como se viu no famoso Cartas de Amor, um dos mais aplaudidos da noite. “Todas as cartas de amor são...”, falava Bethânia. Cleonice concluía: “ridículas”.

Exibindo talento para atuação, que lhe acompanha desde a juventude, quando interpretou textos de Molière e Gil Vicente, Cleonice enfatizava a emoção de poemas como Eros e Psique e Aniversário”com ar de surpresa, expressões de incredulidade, olhares melancólicos. Já Bethânia foi expandindo os gestos ao longo de Poema em Linha Reta, erguendo a voz, até abrir os braços e golpear o ar nos versos finais: “Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? / Poderão as mulheres não os terem amado / Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca! / E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído / Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? / Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, / Vil no sentido mesquinho e infame da vileza”.

Pensam em gravar um disco? – alguém do público perguntou. “Eu quero”, disse Bethânia. “Quando ela disse que queria, a minha resposta só podia ser uma: claro que quero!”, respondeu Cleonice.

Depois de tantos anos em contato com a obra, já chegou a se considerar um heterônimo do poeta? – quiseram saber de Cleonice. “Nunca. Primeiro, seria de uma pretensão imensa. Segundo, Pessoa foi um homem que sofreu, e não sei se eu queria, para mim, todas aquelas cogitações. É incômodo ser Pessoa, a não ser pela imensa glória que ele atingiu.”

Como Pessoa inspira sua musicalidade? – foi uma das questões encaminhadas a Bethânia. “É o poeta da minha vida. Ele sustenta minha respiração, segura o ritmo desassossegado do meu coração. É isso que eu adoro. Leio Fernando como se eu fosse a autora, de tanto que ele me traduz.”

E o poema preferido de cada uma? “Depende da hora”, respondeu a cantora. Já Cleonice lembrou-se de um. “Chegou-me agora, do fundo da memória, um poema curto, simples, sem grandes complicações, de que gosto muito.” E assim a plateia ganhava mais um poema, de brinde, que ela recitou de cor.

Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!


Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!


Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguém!

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