A revolução das domésticas

Ilustração mostrando boneca com lenço na cabeça lavando louça na pia.
Por Zarcillo Barbosa
no JCNet

No Cemitério de Highgate, em Londres, perdido entre tumbas góticas é possível ler numa antiga lápide: “Aqui jaz uma empregada doméstica (servant) que trabalhou a vida inteira e, enfim, descansa em paz”. O epitáfio de uma anônima fez mais para os trabalhadores do lar que a sepultura monumental de Marx, ali perto, com a famosa frase que encerra o Manifesto Comunista: “Trabalhadores de todas as terras, uni-vos”. A mensagem derradeira da modesta senhora, da era vitoriana, começou a mudar as relações de trabalho desses prestadores de serviços. Eles têm o azar de não participarem da produção, e por isso ficam por último na escala de importância.
Mais de um século depois da morte da doméstica londrina, a categoria de trabalhadores vai garantir, no Brasil, direitos a que foram preteridos tanto na CLT de 1943 quanto na Constituição Federal de 1988. Com a Emenda das Domésticas, as profissionais conquistam quase duas dezenas de direitos adicionais. Ainda é pouco para quem tanto contribuiu para a ascensão social da classe média, encarregando-se de cuidados da casa, dos filhos e permitindo maior tranquilidade para as patroas exercerem, também, atividades profissionais. Minha mãe mandava buscar na roça essas “gatas borralheiras” que dormiam no quartinho dos fundos e comiam depois da família. Tinham a condição de “afilhadas”, porque ganhavam roupas usadas, algum dinheiro e ainda podiam ir à escola para se alfabetizarem. No clássico Casa-Grande & Senzala, Gylberto Freire mostra como essa organização colonial condicionou a formação sociocultural da nação. Escravos, comadres, compadres e afilhados frequentavam a casa do senhor, para servi-lo. Era no entorno desse imóvel-símbolo que girava uma sociedade em que todos conviviam. Estavam todos juntos. Mas todos sabiam o seu lugar, desiguais que eram.
O quarto da empregada nos imóveis urbanos é uma inevitável continuidade material da tradicional organização da sociedade brasileira. Mas seu gradativo desaparecimento nas novas construções constitui um sinal silencioso de um novo tempo, mais igualitário, marcado pela valorização da mão de obra doméstica – o que tem levado a classe média a optar por novas formas de executar os afazeres de casa. Aquele modelo colonialista de tratar o empregado doméstico pode nunca ter gerado manifestações de repúdio. No entanto, a “revolta” das domésticas ocupou sempre muito espaço na literatura, teatro, cinema e na música. Longe das telenovelas, onde a empregada casa com o patrão lindo e rico, o clássico do teatro “As criadas”, de Jean Genet (1972), aborda as consequências do ódio das empregadas por sua patroa e da rivalidade que se instala entre as próprias criadas. Eça de Queiroz, em “O primo Basílio” (1908), trata da chantagem a que Juliana submete sua patroa, fruto da inveja e ressentimento que nutre em relação a ela. Em várias de suas crônicas, Clarice Lispector toca na questão daquela que se resolveu chamar de secretária do lar, alternando pontos de vista de empregadas e o dela, patroa. Uma dessas crônicas, intitulada “Por trás da devoção”, fala do “ódio mortal, não declarado” que ela pressentia existir sob um comportamento dedicado. A questão da sexualidade no âmbito do emprego doméstico é, paradoxalmente, fonte de desconforto, mas também de poder para a empregada porque configura área em que pode rivalizar ou, em alguns casos, superar o “poder” da patroa. Minha avó evitava contratar empregadas “novinhas” e ainda impedia-as de usar cabelos soltos e esmalte vermelho, na tentativa de neutralizar a sexualidade. Coitada, morreu sem saber que essa estratégia nunca deu certo. Meu avô, viúvo, casou-se com a empregada. A mais terrível vingança contra os patrões foi a da cozinheira indiana de Frank Lloyd Wright, o maior arquiteto americano e todos os tempos. Ateou fogo na mansão, começando pelas portas para que ninguém pudesse sair. Matou o arquiteto, a mulher, os filhos e outros três auxiliares.
Com os direitos trabalhistas assegurados e os deveres em contrato, os sentimentos de revolta desaparecerão. Quem não ganha o suficiente para sustentar o novo status que lave os pratos, coma fora, automatize a cozinha e compre roupas de fios sintéticos para não precisar passar. Nos edifícios de apartamentos, o quartinho de empregada foi trocado pela vaga na garagem. O fenômeno social talvez aproxime patrões e assalariados. Capital e trabalho são irreconciliáveis, alertava o velho Marx. Sua colega no Highgate provocou mudanças com um simples epitáfio. Quem sabe esteja nascendo a utopia brasileira do todos juntos e iguais.
* Jornalista e articulista do JC

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